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Autismo em mulheres: os motivos que levam ao diagnóstico tardio

A Apae Curitiba conta a história de Nadime, uma influenciadora digital e autista, cujo percurso até o diagnóstico foi marcado por desafios e atrasos significativos.
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Lorena Motter Kikuti
Estagiária de Jornalismo
Publicado em
“Eu ia muito bem na escola, o que dava impressão para os meus pais que meu desenvolvimento estava normal e que eu não precisava de suporte. Só que, na verdade, eu precisava, mas ficava muito bem disfarçado”. Nadime Samaha, influenciadora e ativista da comunidade autista - Foto: Arquivo Pessoal

Desde pequena, Nadime Samaha sabia que era diferente. Na infância, enfrentava desafios como sensibilidade auditiva, aversão a certas texturas e roupas, além de ser sensível à luz. Andava na ponta dos pés, tinha dificuldade com noção espacial e direcional, e demonstrava seletividade alimentar. Apesar da pouca idade, exibia habilidades precoces, como leitura e escrita, e desenvolvia hiperfocos obsessivos em determinados temas. Enfrentava dificuldades sociais para fazer amizades, bem como desafios na escola e na comunicação eficaz, sendo todas as características frequentemente associadas ao autismo.

No entanto, embora as evidências apontassem para essa condição, Nadime só foi diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA), nível 1, aos 24 anos. Durante muito tempo, ela enfrentou dificuldades para entender o que estava acontecendo consigo e foi submetida a intervenções que não correspondiam ao seu verdadeiro diagnóstico médico.

Atualmente, ela se tornou uma influenciadora digital e ativista da comunidade autista. Nadime utiliza suas plataformas, como TikTok e Instagram, para compartilhar vídeos de entretenimento, conteúdo informativo sobre o TEA e sua própria experiência pessoal com o autismo, alcançando uma audiência significativa de mais de 225 mil seguidores no TikTok e quase 110 mil no Instagram. 

Como Nadime descobriu o autismo?

O irmão mais novo de Nadime foi diagnosticado com TEA com apenas um ano de idade. Ao notar semelhanças entre suas características e as do irmão relacionadas ao autismo, a influenciadora começou a considerar essa possibilidade para si mesma.

“Os meninos recebem o diagnóstico mais cedo, sabe? Ele foi diagnosticado com um ano e eu comecei a reparar que nós tínhamos muitas características em comum, foi aí que acendeu uma luzinha e eu falei: `epa, será que é?`. Mas eu mesma me invalidei. Eu falei: ´não, é diferente`”, relatou. 

Ao ignorar os alertas, nessa mesma época, a influenciadora sofreu um burnout (transtorno emocional manifestado por sinais de exaustão intensa, ansiedade e esgotamento físico). Foi então que ela decidiu investigar e buscar ajuda para suas questões psicológicas em um psiquiatra. 

“Quando eu fui nos primeiros psiquiatras, nenhum deles levantou hipótese de autismo.  Levantavam hipóteses de ansiedade, depressão, insônia e transtorno de humor”, disse.

Mas, ainda sim, Nadime sabia que tinha algo a mais. Ela iniciou uma pesquisa sobre o autismo em geral, procurando por especialistas na área e informações específicas sobre o TEA em mulheres. Deste modo, passou a se identificar cada vez mais com a condição. 

Ainda, ela mencionou que teve muita dificuldade em encontrar profissionais especializados que entendessem como o autismo se apresenta em mulheres. 

“Na minha época só meninos tinham autismo. As características que temos em autistas mulheres aparecem de uma forma diferente, às vezes não tão tradicional, porque os estudos sobre o autismo em meninas são relativamente recentes e ainda não entendíamos completamente como isso se desenvolvia’’, relatou. 

Aos 24 anos, a ativista finalmente encontrou a resposta que buscava: após ser avaliada por especialistas em autismo e passar por todos os testes necessários, foi diagnosticada com autismo nível 1 de suporte, além de ser identificada como superdotada, com altas habilidades. 

Sinais ignorados na infância e diagnóstico tardio

Nadime relata que, embora seu comportamento social não fosse muito avançado e sua comunicação precisasse de aprimoramento, seus responsáveis não apresentavam preocupação acerca disso, pois ela não enfrentava dificuldades na escola em relação a notas e desenvolvimento intelectual. Isso resultou na falta de busca por mais informações e tratamento adequado por parte dos familiares.

“Eu ia muito bem na escola, o que dava impressão para os meus pais que meu desenvolvimento estava normal e que eu não precisava de suporte. Só que, na verdade, eu precisava, mas ficava muito bem disfarçado”, comentou.

Naquela mesma época, Nadime lidava sozinha com os sintomas de autismo como sensibilidade à luz, sons, texturas, seletividade alimentar, e, apesar de ter a habilidade da fala bem desenvolvida, tinha muitas dificuldades em realizar uma comunicação efetiva com os colegas e desenvolver amizades.

Para Nadime, os fatores cruciais que fizeram com que esses sinais passassem despercebidos e implicasse em um diagnóstico tardio são: ser mulher e estar no nível de suporte 1.

Nível de Suporte 1 e Masking

A médica Adriane Choinski, psiquiatra, conta que o Transtorno do Espectro Autista (TEA) é categorizado em três níveis de suporte: nível 1, nível 2 e nível 3. Esses níveis indicam a quantidade crescente de assistência necessária para realizar atividades, variando de menos suporte no nível 1 para mais suporte no nível 3.

Os autistas de nível 1 de suporte, assim como Nadime, geralmente, são pessoas que enfrentam dificuldades para seguir normas sociais, exibem comportamentos inflexíveis e têm dificuldade em interagir socialmente desde a infância, havendo então um ruído na sua comunicação. 

Embora possam ter certo grau de autonomia em algumas áreas, é importante destacar que as pessoas com TEA de suporte 1 não são “menos” autistas do que aquelas de suporte 2 ou 3. Elas enfrentam impactos significativos do transtorno em suas vidas diárias e continuam necessitando de terapias e acompanhamento profissional.

Identificá-las pode ser mais desafiador devido ao masking, uma estratégia adotada por muitas pessoas com TEA, desde criança, para evitar bullying e estresse psicológico. 

Assim, a médica explica que, no masking, indivíduos com TEA imitam o comportamento de pessoas neurotípicas para esconder o transtorno e se adequar às expectativas sociais. Ao longo da vida, aqueles que recorreram a essa estratégia podem encontrar dificuldades para se expressar livremente, necessitando de apoio psicológico para superar os efeitos negativos.

A doutora Adriane comenta que a técnica do masking é um recurso mais observado em meninas com TEA pois, segundo ela  “no universo feminino, de fato, para você ser incluída e aceita, muitas vezes, você vai precisar dessas estratégias com maior frequência. Então, eu diria que seria como uma estratégia de sobrevivência mesmo, para ter uma interação de qualidade”. 

Nadime concorda com o posicionamento apresentado por Adriane. A influencer ainda o  complementa, fazendo o seguinte relato: “Eu desenvolvi um masking muito pesado também… O masking é o mascaramento social do qual falamos, e é muito comum que meninas autistas desenvolvam isso como uma forma de proteção social. Então, aprendemos mecanicamente a nos comportar de maneira típica, assim como uma pessoa neurotípica se comportaria. Isso é extremamente custoso para nós, levando-nos a ter burnout, meltdowns e shutdowns, que são crises características do autismo. Essa situação nos impede de nos conhecermos verdadeiramente, perdendo nossa identidade’’.

Ser mulher e ser pertencente ao espectro autista

A psiquiatra Adriane destaca que, historicamente, os estudos sobre o autismo se concentraram predominantemente no comportamento masculino. Como resultado, ainda há uma carência de pesquisas sobre como o autismo se manifesta em mulheres. O que se sabe é que as mulheres exibem o TEA de maneiras distintas e próprias.

“Hoje, inclusive, discute-se a necessidade de mais estudos para desenvolver novos critérios diagnósticos que considerem melhor a subjetividade feminina, que muitas vezes escapa aos critérios atuais”, revela a médica Adriane. 

Por isso, para Nadime, ser mulher se tornou um empecilho na identificação do autismo, já que a sociedade já possui expectativas sobre o comportamento das meninas. Ela descreve esse perfil como sendo caracterizado por comportamentos mais retraídos, menos amizades, menos contato físico e interesses específicos.

“Para os pais, não é estranho que uma menina tenha apenas uma amiga na escola. Agora, se você tem um filho e ele tem apenas um amigo na escola, é algo para se estranhar. Um menino que não quer participar das atividades esportivas é algo para se estranhar. Já com uma menina, não é assim. Se ela está se saindo bem na escola e obtendo boas notas, está dentro da normalidade, sendo que não”, refletiu. 

Ela enfatiza ainda mais essa diferença ao discutir como as mesmas características são tratadas de forma distinta em cada gênero. Nadime explica que existe uma certa disparidade no modo como meninos e meninas são vistos. Por exemplo, se um menino desenvolvesse um hiperfoco em carrinhos, isso poderia ser considerado incomum, levando os pais a pensar que ele é “viciado” nesse interesse. Já no caso de meninas, o hiperfoco em uma boyband, por exemplo, é muitas vezes interpretado como uma fase comum da adolescência, uma “paixão”. Assim, quando meninas expressam características autistas, elas aparecem de uma forma que a sociedade não reconhece facilmente, passando despercebidas.

Dessa forma, a influencer espera que a sociedade olhe para as meninas com mais cuidado e atenção, para que outras garotas não passem pelo que ela passou.

“Eu tive bastante dificuldade ao longo da minha vida por conta de não ter sido diagnosticada mais cedo. Eu desenvolvi ansiedade, eu desenvolvi um transtorno de sono, uma insônia bem severa, a minha ansiedade também é bem aguda”. 

Um diagnóstico preciso é crucial para direcionar as intervenções apropriadas e permitir que a pessoa autista alcance seu potencial máximo, promovendo autoconsciência e bem-estar. 

“Depois que você entende e associa esse diagnóstico, você se empodera dele. Com ele, vem uma sensação muito grande de liberdade, porque, agora sim, eu posso ser quem eu sou, me entendendo, me conhecendo e buscando me reconectar com aquela criança que talvez não teve o suporte que precisava e pode fazer isso agora”, conclui Nadime. 

Portanto, é fundamental que pais e responsáveis estejam atentos aos sinais desde os primeiros meses de vida do bebê. A identificação precoce de comportamentos atípicos pode ser crucial para um diagnóstico preciso e oportuno, permitindo intervenções que têm o potencial de melhorar significativamente o desenvolvimento cognitivo e adaptativo da criança. Para saber mais sobre os sinais típicos do Transtorno do Espectro Autista (TEA) nos primeiros meses de vida, clique AQUI.

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